Antologia da sempre fracassada tentativa de explicar a Copa de 2014

Valter Costa

Campbell (ou Antologia Parte 1)

É possível que haja, até mesmo entre os saudosistas do futebol (que não são poucos e geralmente são irredutíveis), unanimidade em reconhecer a Copa do Mundo de 2014 como a melhor, mais memorável e mais interessante de todas as copas. É bem verdade que não estão claros quais critérios definem que uma copa seja melhor, mais memorável ou mais interessante do que outra, mas também é verdade que a copa de 14 certamente tem argumentos irrefutáveis para dar cabo à discussão.

Não é necessário retomar seus acontecimentos, que já são bem conhecidos. Porém, um deles, apesar de ser conhecido, não é suficientemente abordado. 

Que a Costa Rica tenha surpreendido a todos, também já é bem sabido. O que não é sabido, ou então não é lembrado — e talvez o certo seja dizer que não é conjecturado —  é quem foi o responsável por isso. Aliás, quem foi o responsável não só pela Costa Rica, mas por tudo que se sucedeu durante aquele mês. 

Talvez seja exagero dizer que ele foi responsável também por tudo que se sucedeu ainda depois daquele mês, porém é difícil delimitar o alcance da atuação de Joel Campbell, atacante costa riquenho, naquela copa. Digamos, para não sermos nem injustos com o jogador nem com os fatos, que pelo menos tudo que aconteceu até as eleições, lá para outubro, dá pra colocar na conta de Campbell. Depois disso, pode ter expirado o prazo de validade dos seus feitos; a vida teve de seguir por sua conta e risco. 

O que aconteceu foi que no dia 14 de junho, apenas dois dias após o início da copa, Campbell transformou um jogo duro contra Uruguai em um jogo fácil contra o Uruguai. Após sair perdendo por 1 a 0, gol de pênalti, Campbell empata a partida e a partir daí tudo degringolou. Além de fazer o gol de empate, Campbell desequilibra durante todo o resto do jogo, que virou um passeio de 3 a 1. 

 Nesse momento a coisa muda, porque o único feito impossível na copa, no futebol e no mundo naquele ano era que a Costa Rica se classificasse para a segunda fase do torneio num grupo com Itália, Uruguai e Inglaterra, três campeãs mundiais. Classificar em primeiro lugar do grupo, então, pede a invenção de um vocabulário mais retumbante do que o impossível. Na ausência de tal, sobra apenas o modesto inimaginável (ainda longe de explicar o que de fato aconteceu). 

De todo modo, uma vez que Campbell elimina o impossível e o inimaginável numa tacada só, qualquer tipo de ultraje à logica passa a ser coisa mundana. Se a astrologia algum dia se manifestou de fato, foi através de Campbell, que veio ao Brasil para mostrar que ou os astros estavam muito bem alinhados ou muito bem desalinhados.

E resgatar a figura de Campbell não é mero floreio histórico, mas urgente necessidade futebolística. Porque apesar da existência dele, as pessoas continuam tentando teorizar sobre aquela dobradinha junho-julho como consequência de centros de treinamento bem construídos, técnicos bem estudados e atletas capazes de cumprir sua moderna função tática. Creem ser possível enxergar tudo como um produto previsível do planejamento; uma espécie de organização da vida e justiça do universo.

Pois para resolver o ridículo dessa análise, reproduzo o que alguém falou um dia, em contexto parecido: “[sobre a copa de 2014] é quase mais racional e científico colocar tudo na conta do sobrenatural”. 

Planejamento nenhum pode assimilar Campbell. 

Mas que discutam os CTs, o planejamento, a função tática, o 4–3–3, o falso nove e todos os assuntos relevantes relacionados. Mas que também, no final da discussão, sempre retornem a Campbell.

Na verdade, já existe um furo nos comentários sobre o tema. É o apagão. Quando o apagão surge na conversa é porque ficou claro que os argumentos plausíveis para falar do assunto já se esgotaram. Que essa fronteira só pode ser transposta com o reconhecimento deliberado de que não há tentativa plausível de explicação desses eventos. O problema é que não procuram reconhecer a origem desse acaso, supostamente sem explicação.

Porque não foi apagão; foi Campbell. 

Tibúrcio (ou Antologia Parte 2)

Existiu um brasileiro que levantou a taça da Copa do Mundo de 2014. No ano em que supostamente apenas os alemães deveriam ter a possibilidade de encostar na taça, um brasileiro — que não é jogador, nem técnico, nem cartola — não precisou furar nenhum bloqueio para carregar a copa nos seus braços. Pedir permissão também não foi necessário. Simplesmente foi oferecido essa possibilidade, como presente pelos seus serviços prestados àquela seleção.

O tal brasileiro: Tibúrcio, de nome verdadeiro desconhecido. Tibúrcio chegou na seleção alemã após ganhar fama de pé-quente no Bayern de Munique. Em todos os jogos que ia acompanhar seu amigo e lateral-direito Rafinha, o Bayern ganhava. Dizem até que ele foi o responsável pela derrota na final da Champions contra o Chelsea. Sabe-se lá porque não foi ver esse jogo. 

Mas não é a simples presença de Tibúrcio que lhe garante o carinho de Neuer e cia. Pelo contrário, tem uma função muito específica. Foi convocado pela seleção nacional para dançar e fazer graça. Virou amigo (sem trocar uma palavra em alemão ou inglês, e, muito menos, em português) dos jogadores que gostavam de vê-lo mandar um lepo-lepo ou qualquer outro hit do carnaval brasileiro na concentração. Ainda escolhia as músicas pré-jogo, ensinava as danças para quem quisesses aprender e, claro, dava aquela sorte quando a bola rolava. Contratação perfeita para encarar uma copa do mundo. 

Provavelmente a federação alemã não tinha nada melhor pra fazer, porque todo o planejamento da copa já tinha sido todo feito anos antes e agora a comissão técnica poderia se preocupar com o animador da sua equipe. Já o Brasil, com tempo e orçamento mais curto, não tinha muito o que usar pra animar o time e teve que apelar para um pedido público de Felipão para que a torcida cantasse Revelação nas arquibancadas, porque os jogadores gostavam. Não deu certo.

Do outro lado, Tibúrcio sambava solto na Bahia, acompanhado por Schweinsteiger e Podolski. Foram campeões. 

Antes disso, Tibúrcio teve de apostar a boa-sorte contra sua seleção natal. Sambaram como nunca. Sambaram num nível tão avançado de samba que ficou claro que as aulas de Tibúrcio eram um mero reforço. Um apoio pra quem já sabe, mas quer treinar nas horas vagas. Não tinha como Tibúrcio ensinar tanta coisa, nem que falasse alemão. 

Agora dá para entender que os alemães esconderam o jogo, já sabendo o que tinham planejado fazer por aqui. Fizeram de tudo para esconder, inclusive se fantasiaram. Se fantasiaram de Flamengo, numa desnecessária ironia. Ironia primeiro porque é o clube que representa a maior quantidade de brasileiros. Segundo porque todo mundo sabe que o Flamengo nunca ganharia (pelo menos não com facilidade) um jogo no qual entra como favorito. 

Tibúrcio estava ali apenas como uma parte do plano, uma carta na manga. Virou uma espécie de mascote dos alemães, quase um pet. Dançava quando eles quisessem, um entretenimento acessível. Talvez nem saibam que o nome verdadeiro de Tibúrcio não é desconhecido, mas é Mauro Silva. Foi oferecido que encostasse na taça como um brinde pela sua presença.

Não sabem também se o querem novamente em 2018. Do mesmo jeito que o Brasil não sabe se terá orçamento para um Tibúrcio na Rússia. De qualquer jeito, Tibúrcio é campeão mundial e isso ninguém lhe tira. 

Quais serão as forças sobrenaturais que desequilibrarão a Copa de 2018? Campbell já tem passagem comprada pra Rússia, enquanto Tibúrcio pode ter sido deixado de lado para os alemães, que talvez já não confiem mais na sua eficácia como amuleto.

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