Breve história da Taça do Mundo

Valter Costa

Se existisse uma lista definitiva dos objetos mais icônicos do mundo, uma das formas como ela poderia começar é com 1° - Caneta Bic; 2° - Garrafa de Coca-Cola KS; 3° - Band-aid; 4° - Taça da Copa do Mundo. Nesse caso, chegar em quarto não é nenhum demérito para a Copa do Mundo, porque a concorrência é dura e dos quatros primeiros ela é o único objeto que não pode ser usado pelo público. Isso quer dizer que na categoria de objetos únicos ou de produção controlada a Copa do Mundo é sim o mais icônico de todos, acima da coroa da Inglaterra e da mitra papal. 

O que diferencia a taça dos outros é, naturalmente, que ela é desejada. Enquanto ninguém se imagina como rainha da Inglaterra ou como Papa, todo mundo se imagina como campeão ou campeã mundial de futebol. Ou ainda que não como campeões, gostariam de dar uma encostadinha na taça —  independente de quem seja o dono — , só para poder dizer que encostou nela e sentir se é pesada mesmo. Tal qual Fátima Bernardes levantando a taça em 2002 no ônibus da seleção. Gostariam também, quem sabe, de dar um beijinho protocolar no troféu, como fazem todos os campeões. 

A Copa ainda carrega uma questão curiosa que é o fato de ser um meio-termo entre um objeto único e um “massificado”, porque a Copa mesmo é só uma, mas a cada quatro anos é criada uma nova réplica, entregue à federação campeã. Se postas original e réplica uma do lado da outra talvez nem o presidente da FIFA Gianni Infantino nem os capitães que levantaram a taça saibam diferenciá-las, mas isso não elimina o fato de que ainda assim existe uma que é a original e que ela tem a aura que nenhuma mais tem. 

De certo modo isso também levanta a questão de que se existem réplicas que são apresentadas como a Taça do Mundo (pelos países campeões), porque a original é mais estimada que as réplicas? Pode ser porque a base da taça original já foi quebrada (e consertada). Então ela carrega não só o design e o ouro legítimo da Copa, mas também sua história material, de quebras e consertos. 

No final das contas, é mais fácil admitir que talvez no mercado da arte essa discussão desse pano pra manga, mas aqui a resposta é: não importa. A Copa é a Copa e se eu acredito que ela é a Copa, quero tocar nela e sei que ela é inalcançável, então é a Copa. 

Aqui falamos da taça atual e não da Jules Rimet, embora ela também fosse desejada e icônica, mas que tinha um desenho muito mais pobre. A Jules Rimet o Brasil ganhou o direito de guardar para sempre depois de ser o primeiro tricampeão mundial. Não conseguiu guardar para sempre porque ela foi roubada (ela já tinha sido roubada antes, em Londres, mas foi achada por um cachorrinho chamado Picles; no Brasil não tivemos a mesma sorte de ter um farejador talentoso e a taça se perdeu sem volta). 

Para apresentar a nova taça a partir da Copa de 74 a FIFA abriu um concurso, que acabou sendo vencido por um escultor italiano chamado Silvio Gazzaniga, dentre outros 52 concorrentes. Dizem que Gazzaniga completou todo o projeto em uma semana, na qual ficou enclausurado no seu estúdio. Ele confirma que foi de fato muito rápido. É possivelmente seu projeto mais curto e, ao mesmo tempo, o mais longevo. 

Apesar da aparente grande exuberância do desenho, no fundo a questão dele é a simplicidade: duas figuras humanas fundidas entre si em celebração de vitória, enquanto seguram o mundo. Irretocável. Gazzaniga ainda desenhou outras taças, como as da Copa e da Super Copa da UEFA, mas nenhuma tão perfeita e marcante quanto a da Copa do Mundo. A Taça da Copa é, sem dúvida, o troféu definitivo. O seu criador provavelmente sabia disso, porque quando perguntado se gostaria de mudar alguma coisa do projeto ele disse que “Conheço cada milímetro daquela Taça e se eu tivesse que fazê-la de novo não mudaria nenhum deles”. 

A Taça da Copa é daqueles raros desenhos não-melhoráveis e que são impossíveis de serem imaginados de um jeito diferente, como a caneta Bic e a garrafa de Coca. É verdade que de lado a Taça não é tão bonita quanto de frente. Tem uma certa barriga ali, um vazio muito grande, talvez. Nada que diminua a sua perfeição, porque é realmente preciso de espaço para que as figuras esculpidas se fundam de fato. Também tem razão ergonômica, porque aquele espaço em cada um dos lados faz com que ela seja mais fácil de ser levantada, além de permitir que seja carregada facilmente tanto individualmente como em dupla. E não é preciso nem dizer que o pior ângulo da Taça da Copa é mais atraente do que o melhor ângulo de qualquer outro troféu. 

O primeiro a ganhar o direito de levantá-la, estudá-la, decidir de que ângulo ela é mais bonita, testar se ela é de fato ergonômica e, mais importante, dar aquele beijinho na Copa foi Beckenbauer em 74. Gazzaniga dizia que gostava muito de ver sua criação — especialmente nos momentos de glória — , mas que não lembra onde estava quando ela foi de fato usada pela primeira vez em 74. De Passarella em 78 ele também não lembrava. Nunca esqueceu, no entanto, de Zoff em 82 e tinha orgulho de ter criado o símbolo que representou vitórias italianas por duas vezes. Morreu alguns meses depois de Cannavaro levantar a Copa em 2006. Gostava de pensar ainda que a Copa carregaria pra sempre sangue italiano, que era o seu. Dizia que por mais que os jogadores merecidamente carregassem e celebrassem a Taça, “tem mais de mim do que deles nela”. 

Ainda não citados: Maradona, 86. Matthaüs, 90. Dunga, 94. Deschamps, 98. Casillas, 2010 e Lahm, 2014. Todos marcam, de alguma maneira, a iconicidade do troféu. Mas se tem uma imagem pra sacramentar a permanência deste objeto na história do mundo, você vai concordar que é Cafu, 2002. 

Provalmente mais brasileiros lembram da presença de Regina, mulher de Cafu, na Copa do que a de Rogério Ceni, terceiro goleiro, por exemplo. Porque aquele “Regina, eu te amo”, a medalha de campeão jogada pra trás do pescoço, a camisa com a inscrição “100% Jardim Irene” e o beijinho protocolar mais bem dado da história das Copas nem Beckenbauer nem Maradona superam. Cafu pensou tão bem esse momento para ficar mais marcado na história do que já ficaria que fez questão de quebrar o protocolo na frente do Sep Blatter. Subiu no palanquinho minúsculo, onde antes só cabia a taça e de lá tocou a cerimônia sozinho. Desse dia Gazzaniga com certeza não esqueceu, tanto quanto não esqueceu de Zoff, 82.

A notícia ruim é que a Taça só tem espaço para inscrever o nome dos campeões até 2038 e, a não ser que decidam mudar a chapa para reescrever todos com letras menores, ela vai ter que ser trocada. Segundo o criador da Taça, a Jules Rimet era uma perfeita representação de escultura dos anos 1800 e que a sua era o mesmo para os 1900 e é bem possível que tenhamos que descobrir goela abaixo qual a escultura dos 2000. Ele dizia ainda que não sabia que a Taça precisaria carregar os nomes dos campeões, por isso fez tão pequena. Culpa da FIFA de não ter avisado. 

O outro defeito dela é não ter um nome. O escultor italiano e o capitão brasileiro fizeram de tudo para elevar a Taça a sua aura máxima, mas a própria FIFA dormiu no ponto e não entendeu que um objeto precisa de um nome pra se tornar mais icônico do que já é. Porque basta lembrar que a Jules Rimet era feia e não é usada desde 1970, mas que ninguém a esquece, porque ninguém esquece seu nome. E que é horrível que o nome da Taça da Copa seja “FIFA World Cup Trophy”. 

Por outro lado, é até bom, porque não corremos o risco de ter um objeto tão querido chamado de João Havelange. Considerando que Jules Rimet era uma homenagem a um presidente da FIFA e que a instituição teve menos presidentes nos últimos cem anos do que a igreja católica teve Papas, não ia sobrar muita opção que não fosse mesmo o cartola brasileiro. 

A FIFA tinha é que dar um jeito de achar um nome que não fosse político, que fosse rápido e memorável. Tipo band-aid.

Pode até não ser nenhuma caneta Bic, mas a Taça do Mundo certamente entra na lista de designs quase perfeitos e não é por menos. Só faltou dizer que o 5º lugar da lista seria do objeto cotonete, o que só deixa ainda mais claro o quão bem desenhado é o troféu da Copa.

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