O estádio de Pocitos é invisível

Mas você pode vê-lo com seus próprios olhos

Daniel Salgado

Restam poucos meses até o apito inicial da mais nova edição Copa do Mundo. A 21ª, para ser específico. Lá, em Moscou, no estádio Lujniki. A peleja vai ser entre a anfitriã Russia e os convidados da Arábia Saudita. Jogão. Mas antes disso tudo, vale retornar à gênese do evento, e tentar reviver os primórdios do maior torneio esportivo da galáxia.

E esse mergulho na história não poderia dar em outro lugar que Montevidéu, capital do Uruguai e do futebol aguerrido, anteriormente conhecida como São Felipe e Santiago de Montevidéu. 

O ano era 1930 e, nas margens do Rio da Prata, é sabido que treze seleções se digladiaram nos campos da nação celeste. Representaram o que havia de melhor no planeta terra em quesito bola no pé, ou ao menos entre os que aceitaram o convite da então pouco prestigiosa Federação Internacional de Futebol liderada por Jules Rimet.

Pouco menos de um século depois, não faltam templos do futebol no berço da Copa. É o caso dos estádios Parque Central, que recebe as partidas do clube Nacional, e o Centenário, antiga casa do aurinegro Peñarol.

Ainda assim, mesmo um estudioso da história do futebol poderia andar desorientado pelas ruas uruguaias, gastando todo seu portunhol, que ainda teria extrema dificuldade de encontrar o palco do primeiro gol dos torneios: o Estádio de Pocitos, onde o francês Lucien Laurent carimbou as redes em sua partida de estreia contra a seleção mexicana, tudo sob os olhares de uma casa lotada com mil espectadores.

É, omiti uma informação, um detalhe essencialmente apagado da história da FIFA: o Estádio de Pocitos virou pó, e não foi ontem. Anos antes de Getúlio Vargas, a tímida cancha já saíra da vida e entrara para a história, sem sequer poder ver a celeste levantar o caneco outra vez.

*

Muito se fala da vida útil de uma construção. São assunto sua utilidade prática, seu vigor estético, e as sensações causadas por seus materiais. Pouco, porém, se fala do que acontece após o seu velório, se é que há qualquer tipo de vida após a demolição.

É esse um dos assuntos discutido no filme Columbus (2017), uma cartinha de amor à arquitetura protagonizada pela jovem e sonhadora Cassie e o amargurado e nem tão velho Jin. São longas as conversas em que a dupla discorre sobre as qualidades, possibilidades e limitações das imponentes construções modernistas da cidade de Columbus, em Ohio.

Mas, um terceiro personagem — ausente em toda a trama, como tem que ser — apresenta uma mensagem indireta que fala justamente sobre o que poderíamos buscar para matar a vontade de conhecer o estádio de Pocitos.

O pai de Jin, estudioso da arquitetura que adoece na cidade antes de uma palestra, deixa um diário que passa a ser lido pelo filho. E é nele, em coreano, que se lê a seguinte frase: 

“A arquitetura é o esforço de enxergar o que é invisível e está sempre visível”. 

Motivo de frustração para Jin, essa é uma declaração que nos vale ouro.

Um prédio não existe na solidão, em sentido algum. É preciso que ele seja construído, montado a partir de materiais recolhidos por todos os cantos; sua existência, a principio, se significa nas pessoas; mais do que isso, ele é percebido através de sua interação com a cidade e a paisagem ao seu redor. 

Mas não é nenhuma dessas abordagens que Pocitos requer. No caso desse estádio, não são as coisas ao seu redor que são invisíveis ao olho. É ele mesmo. E isso o resignificou para todo o sempre. Pocitos, em sua pequeneza, era incompatível com o futuro. 

Tratava-se de um estádio tão insignificante, mesmo durante seu auge — a Copa de 30 — , que sequer apareceu na nota do jornal O GLOBO sobre a partida entre França e México, peleja que gerou o primeiro gol da história das Copas: 

“Os jogos inauguraes do Campeonato de Football não estiveram à altura da magnitude do que se deve revestir o grande certamen. […] O jogo entre o Mexico e a França foi todo medíocre, tratando-se de duas equipes fracas, embora a França demonstrasse ser menos fraca que o México. Nunca a partida chegou a interessar nem mesmo quando a França passou a jogar com dez homens dando ao adversário a “chance” de abrir a sua contagem. Mesmo assim poude o quadro francês dominar no segundo tempo, até o fim de jogo.”

Laurent, ou o seu gol, não foram descritos pelo jornal. Naquela edição, do dia 15 de julho, o tal “Campeonato de Football” em Montevidéu perde em importância para todas as partidas do campeonato carioca. É até alvo de deboche.

Hoje, quase 90 anos depois, o que nos resta do match é uma nota sobre um futebol feio, jogado por atletas sem nome em um estádio desconhecido. 

A existência de um minúsculo campo ocupando diversos quarteirões de um bairro nobre de qualquer metrópole do mundo é inviável. O dinheiro fala mais alto, e ele não quer ouvir falar de um campinho quando pode saber de torres residenciais.

A existência de um minúsculo campo como um dos berços do maior evento esportivo da história é inviável. O dinheiro fala mais alto, e ele não quer ouvir falar de um campinho quando pode saber de mega arenas multiuso.

Pocitos não tinha envergadura, assentos, imponência ou fama o suficiente para entrar no grande plano da Fifa para o futuro das copas. O Centenário, esse sim, tinha glórias, tamanho e mito compatíveis com a grandeza da Copa do Mundo de Futebol. 

O gramado de Pocitos era uma bagunça, repleto de poças, buracos e tudo que um verdadeiro campo de peladas tem direito. Era apertado, com pouquíssima separação entre os jogadores e os torcedores. 

Havia mais grama do que arquibancadas, e sua área era torta, estabelecida na medida do possível para se encaixar na região. De amenidades, apenas a solitária cobertura que protegia uma das laterais contra a chuva. E só.

Não a toa, Pocitos também deixou de servir ao Peñarol, time que jogou em seus gramados por mais de uma década e lá chegou a conquistar alguns canecos. 

Capaz de abrigar mil pessoas, foi abandonado em 1933, ano seguinte ao surgimento do profissionalismo no Uruguai. O Peñarol se mudou para o Centenário, palco apropriado as suas futuras conquistas, com arquibancadas que comportam mais de setenta mil torcedores.

Então mataram Pocitos. Sem massagem e sem menção honrosa. Sem protestos ou luto. Se tornou linha de trem. 

E ele ficou morto, invisível, por décadas e décadas, soterrado por cimento e pelos gols feitos nos grandes estádios do planeta. Enquanto se via Obdulio Varela, Ghiggia, Francescoli, Recoba e Forlán na tela, ninguém dava falta da cancha demolida, progressivamente chutada para as notas de rodapé do torneio.

Mas aí veio o século XXI, menos afoito ao progresso do que o anterior, e alguém se dispôs a procurar o estádio perdido. Foi um arquiteto uruguaio, que ao longo de anos cavucou o bairro de Pocitos até que, finalmente, se deu por satisfeito com a localização do demolido centro esportivo. 

A comoção foi pequena. Uma simbólica comemoração foi feita pela prefeitura da cidade e a associação de futebol do país, a AUF. A FIFA, por sua vez, ignorou o achado. Preocupava-se com as copas do futuro.

Disso tudo, ergueu-se um mínimo monumento para demarcar a localização das traves que receberam o primeiro gol das Copas do Mundo. Uma pequenina escultura de ferro fundido, que não consta em guia nenhum. Fica longe de ser uma grande homenagem, mas ainda é maior que uma placa comemorativa.

E é de frente a ela, na Calle Libertad, que podemos prestar homenagens ao primeiro templo demolido do futebol e enxergar o que era invisível. 

Quais questões arquitetônicas a Rússia guarda para o futebol lá jogado durante a Copa? E de que forma os acontecimentos serão transformados em lembrança? Bom, é bem provável que por já ser parte do futuro, os estádios da Rússia-2018 não tenham que enfrentar as mesmas adversidades pelas quais passou a cancha de Pocitos.

Leia a seguir: Quando o galo canta