A bola da copa

Victor Calcagno

A bola da copa custa RS600. Segundo os fabricantes, é à prova d’água, de deformação, de curvas-jabulani e de isolamento social. A bola da copa quer falar com você, ser sua amiga, te incentivar nos treinos rumo à Rússia e gritar “boa, garoto!”, por isso vem com chip. Não exatamente aquele que indica se ela passou da linha do gol, mas um outro que se integra ao seu smartphone a partir da tecnologia NFC, basta aproximá-lo do local indicado na pelota e a mágica acontece — na tela uma porção de vídeos promocionais, dribles, chutes e “conteúdo exclusivo” pra que você e seus amigos possam “viver a experiência” enquanto a Rússia não chega. Um show de tecnologia.

Seis “gomos” fixados com calor, sem costura, com o chip no meio. Gomos não, coisa ultrapassada, mas células. Pixeladas, escamadas, provadas e aprovadas por mais de 600 jogadores profissionais antes do dia 9 de novembro, quando foi anunciada. Messi, Kaká, Del Piero e Zidane, todos devidamente uniformizados, tiveram tempo de bater um “golzinho” pros fotógrafos até que o garoto-propaganda argentino declarasse, como se alguém fosse duvidar: “gosto de tudo nela”. Nas telas, vídeos exibiam os testes pelos quais foi submetida, num deles uma máquina prensa o produto contra uma superfície com água, noutro, uma perna mecânica — com chuteira colorida e tudo — mete vários petardos mirando o ângulo, o computador ao lado mostrando trajetória, efeito e velocidade pormenorizados, todos dados que jamais estarão disponíveis no smartphone. No vídeo promocional, o intertítulo “CONNECT” aparece cobrindo a tela enquanto uma galera descolada faz firula em campinhos.

Bola, pelota, redonda, caprichosa, gorduchinha. Do Brasileirão, da Champions, da Eurocopa, da Libertadores, da Copa América. Ninguém liga, ninguém nem lembra direito. Nenhuma delas é a bola da copa, porque a bola da copa é sempre a bola da copa, só a bola da copa é a bola da copa e para toda a eternidade será a bola da copa. O futebol não é democrático à toa, pra jogar sempre bastou apenas a bola. Ser descolado, fazer firula, ou ter um campinho são estritamente desnecessários. A própria bola, por vezes, assume outras personas, incorpora-se em garrafas de plástico, pés-de-meia e latinhas de refrigerante, estas últimas, ainda que inteiramente de metal, incapazes de emitir o mínimo sinal pros celulares da rapazeada. Tudo muda, no entanto, quando falamos da bola da copa e o fascínio gratuito que despertam em suas diferentes versões, desde aquela idêntica à dos jogos, de R$600, até as curiosamente batizadas de “Original Replica”, mais em conta, porém sem chip, sem “conteúdo exclusivo” e com o risco do jogador não conseguir “viver a experiência”.

O fascínio gratuito pela bola da copa é sempre obsceno, imoral, do tipo que brinca com a boa vontade das crianças. Em 2002, a bola era dourada e vermelha. Não bastava Ronaldo, Ronaldinho e Rivaldo, a bola tinha que ser dourada e vermelha, além de aparecer em promoções da Coca-Cola a cada intervalo nas transmissões. Muitos moleques trocariam o título por um exemplar da Fevernova, ainda que não fizessem ideia desse nome e ela nem tivesse chip interativo. Por isso a incredulidade quando, ainda criança, topamos com uma dessas de frente ao portão de casa. Veio quicando, não se sabia da onde, e parou na calçada. Rua deserta, portões fechados, silêncio total, só podia ser uma armadilha moral. Foi preciso se aproximar devagar, o medo era de que fosse uma bola qualquer ou que desaparecesse assim que o pé tocasse. De mansinho o formato foi se desvelando, dourado e vermelho brilharam inconfundíveis e os segundos de contemplação com a bola na mão foram, eles mesmos, a própria copa de 2002 — e já íamos entrando em casa se no último instante um vizinho não aparecesse correndo do outro lado da rua, gritando pra devolver, que era dele e que muito obrigado por pegar. Filho da puta.

Outra vez, a última, foi em 2014. Inadmissível ter uma copa no Brasil e não comprar a bola, ainda que seja a “Original Replica” por R$50. Cinco dias e dois chutes no muro de cimento depois, a Brazuca não resistiu, furou, murchou, esqueceu. Mas como assim, sra. Vendedora, essa não é a bola da copa? Como é que pode furar assim? A tosca resposta de “mas é assim, agora você precisa comprar outra” soou como traição. A Copa do Mundo era capaz de furar uma bola das suas, ainda que fosse o modelo mais fuleiro?

Fácil imaginar de onde vem o fascínio. Começou em 70 e só podia ter começado em 70. O modelo de então já vinha estampado no cartaz oficial. As novas formas geométricas trazidas na bola pairavam devidamente delimitadas sob o fundo do poster, com exceção do próprio círculo fundamental. A pelota tinha deixado as alongadas tiras de couro e agora, como ressaltava o cartaz, estreava o novo mosaico, um tal de icosaedro truncado, em linguagem geométrica. Trinta e dois gomos costurados, vinte hexagonais, brancos, e doze pentagonais, pretos. O contraste era pra se enxergar melhor no preto-e-branco da primeira copa transmitida pela televisão, o nome ao mesmo tempo uma homenagem e uma profecia: “Telstar”, abreviação de television star, como chamavam os satélites esféricos usados nas transmissões televisivas e que, por seus padrões, lembravam a nova estrelinha. 

Apenas vinte foram produzidas para as partidas no México, o suficiente pra milhões de torcedores verem o gol que o Capita fez e aquele que o Pelé não chegou a fazer. A partir dali e até hoje, toda representação genérica de futebol tem a Telstar como referência, em qualquer lugar do mundo. A bola da Rússia também não conseguiu se livrar da influência e mesmo vinte e seis painéis (células ou gomos, vocês escolhem) mais enxuta, tem no nome a marca da primeira — Telstar 18, com chip, muito prazer.

Não se trata, nem um pouco, de ter serventia, contabilizar dados, ser a bola mesmo um scout particular do dono. Pra isso, aliás, já tivemos a tal miCoach Smart Ball, da mesma Adidas, que vinha com diversos sensores e até carregador. Trata-se, por outro lado, de ser apenas a primeira bola da copa com chip, e isso a Telstar 18 já conseguiu, o mérito é dela, ainda que isso não diga quase nada. No fim, seja ela dourada, vermelha, interativa, de couro, de fibra de carbono, unida com cola ou custuras, fatalmente ainda é uma bola, objeto que serve pra se chutar. Mas se a versão atual não tem desdobramentos tecnológicos muito edificantes, quais as próximas fronteiras? Uma bola que diga se foi ou não solada, que acuse impedimento, que se recuse a rolar na falta de fair-play? Nesse caso, então, será bom lembrar o dia que já foi possível comprar uma “Original Replica” por módicos R$50.

No futebol, a bola significa duas coisas: ela é o futebol, ao mesmo tempo em que é um detalhe do futebol. Claro que essa máxima não se aplica à Copa do Mundo, onde nada é um detalhe e onde a bola é cuidadosamente avaliada pelo público em cada um dos seus aspectos. Incluindo, claro, o seu preço.

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