Altinha

Bernardo Mello

Perdón, pero están jugando altiña? Me gustaria muchisimo jugar con vos.

O corte de cabelo ao estilo mullet, o ar zombeteiro e o sotaque com um quê de superioridade — além, é claro, da camisa com o rosto de Maradona abaixo da palavra Dios — não deixavam dúvida: era um típico argentino. A única questão em aberto era por que aquele sujeito, com visual esfarrapado e rosto com marcas de cansaço, decidira se enturmar com a turma de altinha do Léo do Três em plena quinta-feira à tarde. Tudo bem que é Copa do Mundo, todo dia é festa, e quinta-feira — o bom carioca sabe — já é quase sexta. Mas se meter logo com o Léo do Três? Não tinha ninguém para dizer ao gringo que essa turma só tem fera?

O Léo, para começo de conversa, já passou mais de cinco horas sem deixar a bola cair. Dizem que entrou gente, saiu gente da roda, e Léo não arredou pé, nem permitiu que a danada pegasse na areia. Isso já faz tempo, pelo menos uns dez anos, mas todo mundo sabe que é verdade. Até porque foi nesse dia que ele ficou eternizado como Léo do Três, apelido dado pelo Mirandinha, salva-vidas do Posto 3, que assistiu tudinho ali do alto. O Mirandinha, aliás, aprendeu a bater altinha com o Léo. Hoje faz questão de juntar na rodinha antes ou depois do trabalho, dependendo do turno que for escalado — ou até durante, se for um dia de pouco movimento na praia.

Até o Paulão, 1,90m, desengonçado toda vida — menos para jogar altinha, ele logo emenda -, percebeu de cara que o tal argentino não tinha cara nem de saber fazer embaixadinha, quanto mais acompanhar o ritmo daquela roda. Pensou em cochichar isso no ouvido do Mirandinha, mas no meio do caminho lembrou de uma piada de português, provavelmente porque é gringo também, e preferiu contá-la. O Mirandinha, que não abre sorriso por nada desse mundo, gargalhou com vontade — só o Paulão pra arrancar uma risada que sacode desde o ombro largo até a perna curta do Mirandinha.

A falta de aptidão do argentino para jogar altinha fez ressurgir a simpática carranca do Mirandinha, que achou o sujeito meio familiar. Tinha a nítida impressão de que tinha visto o argentino alguma outra vez, não lembrava onde nem quando — com certeza jogando altinha é que não foi, porque o gringo fazia tanta vergonha que até irritava. O Paulão lembrou outra piada de português, mas achou que não era o melhor momento para contar e ficou calado. Já o Léo xingava em alto e bom português (às vezes até em portunhol, que parecia mais um português com sotaque) toda vez que o gringo batia de canela e mandava a bola longe — tão longe que nem o famoso Léo do Três conseguia salvar. De cabeça o argentino era pior ainda: só acertava o ar. Lá pras tantas, querendo imitar o Paulão, o argentino quis jogar de ombro. Quase arrumou um torcicolo. Mesmo assim continuava jogando, se divertindo cada vez que os brasileiros não alcançavam suas tijoladas.

Boludo, estás picado? Dáme la pelota a tu papá.

No seas pecho frío, vamos! Hay que tener ganas de jegar (llegar, com aquela pronúncia bem portenha).

Por incrível que pareça, pensou o Paulão, esse argentino sabia entrosar. O Paulão andava quase achando que o gringo cairia bem na resenha do Bar do Zico, religiosamente celebrada toda quinta à noite. Já o Mirandinha, que geralmente tinha muito tempo ocioso na vida mas mesmo assim não suportava ouvir bobagem, foi enchendo um pouco o saco daquele argentino e — força do hábito — começou a procurar algum banhista em apuros. Até se distraiu um pouco da altinha, coisa que ele não fazia em hipótese alguma, e quando percebeu o voo rasante da bola já era tarde demais para se adiantar e amaciar com a parte interna do pé. O jeito foi se esticar o máximo que dava e salvar quase de bico — logo na direção do argentino!

O gringo mal piscou e já viu a pelota a meio palmo do próprio nariz. Não teve dúvida: levantou os dois braços e, num ato-reflexo que só poderia ser explicado por um neurologista — o que não era o caso de nenhum dos presentes — , salvou o rosto do impacto. Mais que isso: segurou a bola com firmeza, sem deixar cair, uma defesa de almanaque. Entre surpreso e orgulhoso da façanha, o argentino gargalhou e logo emendou:

La mano de Dios!

O gringo pensou que ia arrancar sorrisos dos brasileños, mas o Léo já andava puto com a fanfarronice do argentino e aí perdeu a esportiva de vez. Quem inventou para aquele gringo dos infernos que podia usar a mão numa partida de altinha? Por acaso ele achava que tava o quê? Vôlei?

“Tá querendo forçar amizade, parcero? Enfia essa mão no seu cu. Se num sabe jogar, mete o pé daqui. E Maradona é o caralho”.

O Paulão, que geralmente não esquenta muito a cabeça com qualquer coisa que não seja o Flamengo, também se incomodou. O gringo quase me enganou, ele pensava. Parecia gente boa, mas não tem ética nenhuma.

“Rapá, tu vai arrumar problema assim. Altinha é com o pé”, bradou o Paulão, e como sentiu que ainda não tinha sido claro o suficiente puxou na memória o único xingamento estrangeiro que conhecia. “Fuck you, seu merda”.

Nessa hora o Mirandinha teve que voltar para o serviço (era um daqueles dias que o movimento não andava muito grande), e por isso acompanhou de longe e do alto o resto da discussão, que não demorou muito. O argentino abria os braços e levantava os ombros, como se não entendesse a irritação dos colegas recém-conhecidos. Aparentando um pouco de inocência, ele tentou continuar a partida, achando que aquela reclamação toda fazia parte da persona dos brasileiros quando jogavam bola com um hermano

Léo do Três resolveu ser um pouco mais claro e, fingindo que iniciaria outra sessão de altinha, deu um bico que fez a bola atingir a boca do estômago do argentino. Não tinha goleiro, muito menos argentino, que conseguisse defender o bico do Léo do Três. Paulão riu. O gringo se irritou e, depois de uns quarenta segundos sem ar, levantou xingando e saiu irritado. Um grupo de ratos de praia que estava por ali, todos amigos ou pelo menos conhecidos do Léo, perceberam a confusão se formando e tomaram as dores. Voou areia, voou lata de cerveja e até um saco de lixo foi atirado na direção do argentino. Um camarada ensaiou atirar um coco vazio, ainda com canudinho na abertura. Foi desencorajado por dois guardas municipais que se aproximaram do fuzuê e conduziram o gringo para fora da areia.

O Mirandinha, àquela altura de volta ao serviço e observando toda a situação do alto, percebeu que o argentino tinha um trailer estacionado no outro lado da rua. A bandeira da Argentina descansava no vidro dianteiro. Foi que bateu um dejá-vù na cabeça do Mirandinha, que evitava palavras estrangeiras sempre que possível e preferiu chamar aquela sensação de estalo. Quatro dias antes, o salva-vidas tinha visto o trailer igualzinho, parado no mesmo lugar, com o pavilhão albiceleste à mostra no capô.

Foi naquela posição que o argentino havia assistido à vitória sobre a Bósnia, por 2 a 1, no Maracanã. Um jogo meio sofrido, com cara de que ia dar tudo errado, como se fosse um tango. Os bósnios fizeram dois gols, só que um foi contra, e a Argentina tinha Messi — quem mais? — para desequilibrar e garantir a vitória. Sofrendo no meio-fio do calçadão de Copacabana, eventualmente na ponta dos pés, o gringo conseguia enxergar o telão da Fan Fest por cima da cerca instalada na areia. Para alguém que havia chegado tão perto da Copa, aquele estava longe de ser o melhor ângulo. Até queria se misturar com os brasileños, mas sentia-se duplamente empurrado à sarjeta no Rio de Janeiro: por ser muito argentino, como Maradona; e por não ser melhor do que Pelé.

Tudo indica que a caravana argentina segue confirmada para a Rússia. Talvez em menor número, porém com certeza com o mesmo entusiasmo de se enturmar com a população local.

Leia a seguir: A bola da copa