Cartas ao VAR

Bernardo Mello / Valter Costa

Minsk, 27 de maio de 2018

Meu querido Valter,

Te escrevo de Minsk, capital da Bielorrússia, mas essas palavras não me significam nada além do que salta aos olhos à primeira vista — que foram escritas porque tive a oportunidade de abrir meu computador em Minsk, e que esta cidade é o centro administrativo de um país chamado Bielorrússia. Talvez eu deva acrescentar que bebo uma cerveja chamada Речицкое, e que demorei uns sete segundos para atribuir a pronúncia Rechitskoe às letras em cirílico. Ainda não decidi se acrescento este detalhe, pode ser que você julgue insignificante, logo cansativo.

Bem, já escrevi de todo modo, então deixe-me pelo menos defender sua presença nesta carta: esta “Rechitskai” — acabo de me lembrar que no russo este oe no fim da palavra tem som de ai ; mas estou divagando e fugindo do assunto, claro — esta “Rechitskai” é um jeito de tornar mais interessante minha escala de dez horas no Aeroporto de Minsk, e também a melhor chance que eu terei de conhecer a Bielorrússia. Sim, porque a julgar pelo terminal a meu redor, lamentavelmente esvaziado de pessoas durante a madrugada e irritantemente povoado com placas em que se lê Duty Free — que tentam nos dizer o quão estúpidos somos se não comprarmos produtos tão mais acessíveis do que no mundo exterior, veja você, como se pagar por algo que não precisamos se tornasse justificável só porque estamos num universo paralelo, sem impostos; me desculpe, divago mais uma vez. Eu dizia que, a julgar pelo terminal a meu redor, eu poderia estar tanto em Lisboa quanto em São José do Rio Preto, duas cidades que também só conheci pela janela do avião e pelo raio-X do aeroporto.

Fiquei tão incomodado com essas placas de Duty Free que passei a buscar na memória se já segui outras vezes essa linha de raciocínio estúpida — comprar uma ideia só porque ela está aí, tão acessível, sem que pareça haver alternativa. Foi aí que me questionei se você não estava certo, no fim das contas, sobre o Árbitro de Vídeo. Aliás, este é um dos raros casos em que usar a sigla em inglês faz sentido: VAR é uma forma tão menos sisuda, menos livro-de-biologia, que se impõe com naturalidade.

Você já me disse que esse tal de VAR mais embaralha que explica, mais turva do que esclarece, e não te dei ouvidos. Costumo pensar no VAR, pelo contrário, como um bem-vindo sinal dos tempos. Não me entenda mal: você sabe que tenho urticária quando vem um entendido qualquer e trata a ciência como um (ou uma) camisa 10 que resolverá todas as aflições mundanas. Nós sabemos muito bem que certas aflições só podem ser resolvidas por quem veste um número 10 às costas. Confiar cegamente na tecnologia só porque ela está aí, evoluindo e se espalhando diante dos nossos olhos, é para mim uma tolice do mesmo naipe dessas malditas placas Duty Free. Não, não, não.

Nunca me enganei que o VAR salvaria coisa alguma. O lance do Sergio Ramos caindo sobre o braço do Salah, por exemplo. Quem me garante que o tal árbitro de vídeo, se usado fosse na Liga dos Campeões, seria capaz de identificar que aquilo foi um golpe de judô, e não um lance de futebol — se ele não é obrigado a sequer reconhecer a existência do judô para trabalhar com futebol? E se ele por acaso identificasse como um golpe de judô, puniria Ramos como ippon, yuko ou wazari? Aliás, te conheço e imagino como foi doloroso ver o Salah deixar o campo aos prantos antes de completar meia hora na sua primeira final de Liga dos Campeões. Mas essa dor te fez rever sua contrariedade ao VAR? Imagino que não. Os críticos ao VAR são mais firmes em suas opiniões do que nós, agnósticos do futebol, que não vemos nada essencialmente eterno.

É assim que vejo o VAR: uma das muitas formas de interação entre mundo exterior e o que acontece dentro das quatro linhas. Sempre foi assim, desde que alguém julgou uma boa ideia construir arquibancadas ao redor dos gramados — já parou para pensar que o futebol poderia ser disputado num ambiente blindado, asséptico e impessoal como um terminal de aeroporto se alguém, certamente há mais tempo do que consigo contar, não tivesse percebido como era bonito o interesse que aquilo nutria na gente comum?

E se essas interações mudam o futebol, que bom! Porque a via é de mão dupla: os deuses do futebol, que nunca foram espíritos e sim gente falível de carne e osso, tipo eu e você, também mudam a realidade a seu redor. Te dou um exemplo que me chamou atenção na final da Liga dos Campeões: enquanto Salah sai de campo chorando, Cristiano Ronaldo se aproxima e fala um qualquer coisa em tom de consolo. O idioma, o conteúdo da mensagem e até o vocativo — terá chamado o egípcio de “Mo”, “Salah”, “Mohamed” ou nem chamado de nada? — tudo isso importa pouco neste caso. Porque, um milionésimo de segundo depois do gesto, Cristiano Ronaldo olha brevemente para o telão. Quer ver as câmeras reproduzindo seu consolo para todo o mundo. Espontâneo ou calculado, é um gesto que deixará uma mensagem acalentadora a quem estiver buscando por uma. E que só existe, assim como tantos outros gestos do futebol — das comemorações levantando a camisa para mostrar uma mensagem em outra camisa, tão típicas dos anos 90, até as dancinhas atuais — porque existe também, em cada jogador, a noção de que as câmeras flagram até o menor detalhe de sua conduta. A tecnologia já mudou o futebol. O VAR é só mais um capítulo num livro bastante volumoso.

Mas eu falava, lá no início, sobre as placas de Duty Free. E me pergunto, depois de vê-las, se não estou caindo numa armadilha desse tal de VAR, que é afinal de contas um impostor que, em vez de andar a cavalo, pousa de avião no Velho Oeste. A Copa do Mundo que começa em duas semanas só deu certo para nós quando foi mais paixão do que ciência. E aí chega o VAR propondo uma mudança tão brusca que nos roubaria um gol chorado ou, pior!, que pode falhar na correção de uma injustiça — sempre cometida pelo adversário, claro, porque se for a nosso favor não é injustiça, é desejo divino — mesmo depois de colocarmos nossas esperanças em sua frieza científica e positivista. Como se o VAR fosse um camisa 10 que decepciona. Imagina se o VAR se torna nosso camisa 10, se ele nos garante um título de Copa do Mundo! Seria um título mais triste do que os gols do Paolo Rossi, do Caniggia e do Zidane juntos.

Chegaram mais pessoas aqui no meu terminal — parece que vai sair um voo para a Turquia daqui a uma hora. Eu vou seguir esperando minha hora de ir para Moscou. Talvez, depois de uma boa noite de sono, impossível por hoje, eu perca meus pesadelos recentes com o VAR. Até porque pode ser tudo isso, mas também pode não ser nada, né?

Um abraço do seu amigo,

Bernardo

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Rio de Janeiro, 5 de junho de 2018

Bernardo, querido,

Posso afirmar categoricamente que para mim, a partir de agora, os aeroportos de Minsk, Lisboa e São José do Rio Preto não possuem absolutamente nada em comum, como possuem pra você. Te garanto que ler sobre o aeroporto de Minsk foi diferente do que teria sido ler sobre São José do Rio Preto (embora eu confie que com você na narração, teria sido igualmente prazeroso). Afirmo também que de agora em diante a Bielorrússia e a cerveja Rechitskoe (ai) são a mesma coisa pra mim.

Te poupo da descrição do lugar onde habito ao te escrever, primeiro por não ter nele nada digno de nota como uma Rechitskai gelada. Segundo porque reli sua carta tantas vezes em tantos lugares diferentes que seria injusto com qualquer um deles me ater apenas ao último.

Felizmente você abriu uma brecha para um tema onde eu ainda tenho a ilusão de poder acrescentar algo relevante. De início, posso considerar uma vantagem retórica dizer que nunca fiz uma compra em Duty Free, se você diz que o argumento de venda deles não é tão convincente assim.

Não posso dizer o mesmo do VAR, que já comprei com convicção. Já fui da turma dos legalistas; abracei com gosto o progresso. Depois, como você bem sabe, me livrei da compra tão rápido quanto percebi que ela era cara demais.

Apenas lamento que eu tenha que carregar o título de conservador nessa história. Conservador, eu? Sempre gostei de me enxergar como um progressista. A questão é que não consigo ver o VAR como progresso. Basicamente concordo com tudo que você falou, inclusive admiro sua reflexão sobre como cada pedaço do futebol é arbitrário, porém necessários ao que a gente conhece como futebol, junto das suas mudanças contínuas, desde a transmissão de TV até a arquitetura e arquibancadas. Pode não parecer, mas até sou entusiasta de algumas das mudanças (creio que já conversamos como eu acho ingênua e quase sempre pouco produtiva demonização do “futebol moderno”, por exemplo).

O VAR, por outro lado, me toca num ponto fraco. Aliás, creio que toca o futebol num ponto fraco e, justamente por isso, não é das evoluções mais aguardadas por mim. Não me recordo se já te relatei como cheguei nesse estágio “cético” (outro termo que não me agrada, porque quase sempre é usada por algum sujeito que se acha muito espertalhão por não acreditar em algo que outras pessoas acreditam). De todo modo, não consigo imaginar alguma reclamação sua caso eu me permita ser repetitivo nesse instante (o voo saiu? a Rechitskai acabou? Moscou mais uma vez?).

Pois bem, foi na tediosa Copa das Confederações de 2017 que meu entusiasmo pelo árbitro de vídeo se tornou um desprezo irredutível. Agora não me lembro se foi em jogo do México ou do Chile, mas lembro bem que durante a competição alguns gols já haviam sido anulados por vídeo e que esse jogo do México ou do Chile foi o que esgotou minha paciência. Mais um gol anulado depois de comemorado. Mais um impedimento mínimo. Lembro também de ter pensado claramente: “Agora não me manifesto mais por nenhum gol nessa competição. Só posso considerar o gol como válido assim que o jogo for retomado no círculo central”.

Esse evento basicamente poderia abrir e encerrar o meu argumento.

Agora posso justificar porque só concordo com você em partes. Ao mesmo tempo em que ao longo dos anos o futebol teve de lidar com acréscimos que o transformaram profundamente, essas mudanças são todas acessórias.

Entre um gole e outro de qualquer cerveja moscovita que não seja a Rechitskai, tente imaginar o que seria o futebol mínimo possível. Exclua as câmeras, os árbitros, os uniformes, os estádios. Até mesmo os jogadores e a bola. Para que ainda seja futebol, só precisa restar o gol e o clímax.

Pois bem, como eu poderia apreciar uma ferramenta que mexe com o que há de mais futebol no futebol? Se o VAR me faz duvidar do gol, então sou radicalmente contra ele. E veja que não falo apenas de um gol. De um gol do Chicharito ou do Vargas. Falo do gol. De todos os gols. Da ideia do gol. Por isso que insisto que o VAR não mexe com a manifestação temporal do futebol, mas com a ideia de futebol em si.

Acho curiosa a forma que tomou a discussão Variana aqui pelo Brasil (não sei como ela anda na Bielorússia). VAR = progresso. Contra = retrocesso e corrupção. Também acho engraçado que eu tenha ficado do lado do retrocesso. Em algum comentário meu sobre o tema na internet, recebo a resposta de um desconhecido. Algo como: “Isso é o Brasil! Só querem levar vantagem!!”. 

Você imaginava que um dia eu seria o Brasil? Eu pessoalmente fiquei muito surpreso com a atribuição.

Por isso aproveito pra deixar claro que sou a favor da justiça! Aparentemente a estupidez dessa declaração se tornou necessária no meu caso. Sim, sou a favor de que os impedimentos sejam marcados e que os gols de mão não sejam contabilizados.

Mas também tenho que admitir que o erros de arbitragem afetam apenas os lances afetados, enquanto a suspensão na crença do gol (criada pelo VAR) afeta todos. Sei que você vai entender quando digo que o clímax, no futebol, está acima da justiça. O clímax está acima de tudo o que é acessório, pois ele é o próprio futebol. (Você acredita que um dia vi um suposto especialista em futebol dizer que prefere o anticlímax a um erro de arbitragem? Como este rapaz chegou a gostar de futebol?).

Me parece que esta tecnologia é mais ferrenhamente defendida por aqueles que não a conhecem muito bem do que pelos que convivem semanalmente com ela. Você sabe melhor do que eu como a liga Alemã começa a ter dúvidas sobre o uso do vídeo depois de algumas temporadas de teste, por exemplo.

Também faço questão de sentenciar o golpe de Sergio Ramos como um eficiente wazari (quase uma queda com as costas direto no chão, mas não o suficiente para caracterizar um ippon). Neste caso mantenho minha posição, sabendo que qualquer punição que o árbitro de vídeo pudesse ocasionar ao zagueiro espanhol não seria suficiente para a sua mau-caratice (nem mesmo se fosse considerado um ippon digno de cartão vermelho). Continuo ansioso por Salah na Copa e não pelo VAR.

Espero que sejamos poupados de ter como a imagem do título mundial de 2018 um árbitro em primeiro plano voltando da cabine de vídeo e validando um gol que teve sua comemoração suspensa.

De todo jeito, o que espero mesmo é que quando voltarmos a nos ver, após esse apito final, falemos de tudo, menos de arbitragem. De preferência, com uma Rechitskai ou coisa parecida na mão.

Um abraço de algum lugar desinteressante,

Valter.

Introdução mais polêmica ao futebol desde o cartão amarelo, o VAR chega não para encerrar as discussões de arbitragem, mas para acrescentar mais algumas. Inegável, entretanto, que ele traz novidades bem-vindas. Como, por exemplo, uma troca de cartas Brasil-Rússia em pleno 2018.

Leia a seguir: Antologia da sempre fracassada tentativa de explicar a Copa de 2014