Quando o galo canta

Paula Ferreira

No meio do ano de 1998, duas preocupações pairavam na cabeça da menina de 7 anos: as marias-chiquinhas perfeitamente atadas com elásticos nas cores do Brasil, e o aumento do quórum de sua reunião de minicraques até o apito final em 12 de julho. O título era certo. Afinal, tanta fita nos postes e tinta nas ruas não poderia ser em vão. Por acaso algum outro país vestia trajes tão bonitos para um campeonato de futebol? Vencer o mundial não era uma questão.

Ainda assim, jogo a jogo, preparava seu ritual por desencargo. Só conheceu o futebol casado com a superstição, não existia litígio capaz de separá-los, e ela não o faria agora. A cada partida, rumava com a tia para um sobrado na rua Ribeiro de Almeida, em uma cidade do interior de São Paulo, sentava no mesmo lugar no chão, brincava com pipoca — a cachorra espevitada que arranhava sem pena qualquer interlocutor—, e aguardava a partida. Era questão de 90 minutos para o destino se cumprir. 

Tudo em ordem, até que ela conheceu os galos.

Já não nutria muita simpatia por esses animais, em decorrência da surra que tinha levado de um deles no quintal da avó, então olhou com desconfiança a figura no lado esquerdo do peito dos jogadores com aquela camisa azul. Mas relevou: não havia a menor possibilidade de a carreata ser adiada, a festa cancelada, as marias-chiquinhas desatadas para ir dormir sem um mundial. Os cabelos amanheceriam marcados no dia seguinte, porque, de tanto pular, acabaria apagando com o pé preto no primeiro sofá que encontrasse, sem desfazer o penteado. 

Tudo em ordem, até que foi obrigada a reparar em Roberto Carlos.

Aos 7 anos já é permitido odiar um jogador, ainda mais naquelas circunstâncias, quando a firula que resultou em escanteio fez os galos marcarem o primeiro gol. Fixou na memória que não deveria dar confiança para quem levasse aquele nome. Só conhecia dois, o velho que aparecia sempre no final do ano, e o careca que deu o escanteio aos franceses. Não gostava de nenhum deles.

Até poderia perdoar o lateral, mas quando veio o segundo gol e os elásticos do cabelo foram desamarrados um a um até o terceiro tento da França, desistiu. Conheceu, e odiou, Zidane naquela final de 98. Quando o jogo acabou, fez bico e quis chorar. Filhos caçulas não estão acostumados a serem contrariados. Por que ninguém nunca disse isso aos galos (os do quintal da avó e aqueles de camisa azul)?

Pegou uma coxinha na mesa, mas, como nunca tinha acontecido, o sabor estava sem graça. “Frango… GALO!”, refletiu antes de ser tomada pelo braço para voltar para casa e dormir às 21h, sem taça nem marias-chiquinhas. Chorou na cama, que era lugar quente naquele frio de julho do interior paulista.

Em 2006, o ritual era outro: incluía ir à praça central, amigos e o flerte com aquele menino que era a fim aos 15 anos. A fé quase inabalável na seleção, renovada quatro anos antes quando a carreata do penta finalmente aconteceu, afastava qualquer ceticismo em relação ao hexa. Mas, bem lá no fundo, não tinha a certeza que carregara há oito anos, quando ostentava as marias-chiquinhas.

O Brasil avançou até as quartas de final, no dia 1º de julho, e aí eles chegaram de novo. Dessa vez usavam branco, mas a figura no peito esquerdo continuava lá. Ela lembrou da sova no quintal da avó, de Roberto Carlos, Zidane, os cabelos esparramados no travesseiro, e desejou que o trauma não fosse um presságio. Aos 11 minutos do segundo tempo, a sexta estrela na camisa canarinho sucumbiu diante dos mesmos personagens que, para ela, atrasaram o grito do penta: cobrança de Zidane, paralisia de Roberto Carlos, e o gol dos galos, marcado por Henry.

O que explicava o time dos pentacampeões cair nas quartas? Ignorou o mau futebol e apelou para a superstição. Fazia certo sentido enfileirar os motivos daquela menina que tinha sido aos sete anos: França, Brasil, Zidane, Roberto Carlos. Cornetou todos eles, ficou triste sem o hexa, e se irritou com a quebra do ritual. Hoje não tinha praça, amigos, nem beijo naquele menino de quem era a fim.

Depois de um longo inverno de 16 anos sem vibrar pela taça, incluindo o choro sentido ao ver no placar o 7x1, em 2018 decretou que as coisas seriam como em 2002. Entrou na internet para mapear as pedras no caminho, e, nessa volta, descobriu que em 1986 eles também estavam lá. Não Zidane, nem Roberto Carlos, mas a eliminação nas quartas e os galos. Girou mais um pouco e checou o chaveamento. O Brasil está no grupo E, a França no C. E sentiu o estômago revirar ao perceber mais uma vez o risco: os galos ali nas semi, ou mesmo na final. E decidiu que, se isso acontecer, vai assistir ao jogo com os cabelos soltos. Por medo, ou superstição.

Estaria o hexa dependendo do fato de não encontrarmos esses animais inoportunos no nosso caminho? Talvez a confiança para o título na Rússia esteja tão alta que nem sequer notamos neles. Curiosamente, já cometemos esse erro em outras Copas.

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