Sobre amar Galvão Bueno

Victor Calcagno

Tarefa das mais hercúleas e ingratas, por si só um jogo em que não apelar é a vitória. Bastam cinco sílabas: materializamos a face nacionalmente esculhambada e ouvimos os gritos de “é tetra”, o “r” rasgado de Ronaldinho, Rivaldo e Roberto Carlos, o “olha a bomba!” sem-vergonha prolongando-se ao infinito. Amá-lo seria só um guilty pleasure? Não, porque demanda esforço além do razoável. Requer coragem, entrega, impavidez moral e paciência, sobretudo pra ouvir. Não só a ele, mas principalmente aos que muito compreensivelmente o odeiam, para os quais o narrador é sempre um alvo, alguém cujo mínimo deslize vale a morte e a classificação. Pois amar Galvão Bueno sempre será um eterno exercício de resiliência.

Sobre Carlos Eduardo dos Santos Galvão Bueno ouve-se muita coisa, algumas que se repetem com mais frequência e, conforme passam os anos, cada vez menos dó. “Chato”, “irritante”, “viciado”, “arrogante”, “burro”, “constrangedor”, e mais recentemente, como para justificar todos os outros, “gagá”. Com 67 anos e dois títulos do mundo na lista de eventos transmitidos, há também quem chame o narrador de “pé frio”, e justifique a opinião citando os três últimos mundiais, como se Galvão pudesse escolher não gritar os gols da Alemanha, ainda que curto e bem fraquinho — um alento que, com ele, sempre temos direito.

O aparente descontrole emocional nos jogos da Seleção, aliás, é outra das críticas mais recorrentes, aparecendo sob formas variadas e que merecem um grau maior de sofisticação: xingam-no de “histérico”, “exaltado” e até “parcial demais”. Nenhuma dessas condenações, no entanto, se compara ao simples “cala a boca”. Ser GB, imaginamos, ou assistir seus jogos, temos certeza, trata-se de conviver com um onipresente “cala a boca, Galvão”. A argúcia da frase, sua perfeição técnica e capacidade de síntese é apenas irresistível pra não ser utilizada. É muito fácil gritar, levar um cartaz com os dizeres pro estádio, publicar na internet. Em três palavras, desafiam um narrador, um canal de TV e a própria Seleção pelo prazer iconoclasta de destruir. Em 2014, lembremos bem, o #CALABOCAGALVAO gerou comoção pública, o narrador esteve entre os assuntos mais escrachados da rede mundial e se viu inclusive obrigado a comentar tudo com muito bom humor, em matéria de sua própria emissora, narrada com gracejos por Tiago Leifert. Então se Galvão é odiado em quatro continentes, ainda que de mentirinha em três deles, o que o faz digno da melhor compaixão cristã?

Dizia Theodor Adorno, o qual jamais deve ter encostado em uma bola de futebol, que “se divertir é estar de acordo”. Galvão, em sua incoerência estilística, excessos emotivos, gafes variadas e erros desesperados, por sua vez, torce conceitos formulados por estudiosos da Indústria Cultural: divertir-se, assistindo-o, é essencialmente não estar de acordo. Apenas um narrador temerário assim, incauto em parecer ridículo, patinar nos comentários, sem vergonha de ser fanático e bufão consegue transmitir a única coisa a que narradores são sempre obrigados — a tal “comoção” que o telejornalismo esportivo quer sempre explorar em zoom no rosto dos torcedores. Sobre isso, Galvão é insuperável, e não é porque o sinal das partidas na Globo costuma chegar três segundos antes de qualquer outra emissora, garantindo-o leve vantagem, e sim porque, há muito tempo, deixou de se importar com o “cala a boca”.

E ainda que milhares o odeiem, não é novidade esperar que seus simpatizantes acostumados à esculhambação, uma vez mais, sejam resilientes e o amem com maior intensidade durante a Copa de 2018. Haja coração, amigo.

Quem apostou em uma aposentadoria do Galvão em 2014 se deu mal, porque agora ele tá mais confirmado para a Rússia-2018 do que seu pupilo Neymar. Também não se surpreenda se apenas depois do hepta ele pendurar o microfone.


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